Pacientes e médicos se mobilizam para que o uso da maconha medicinal seja autorizado no Brasil

Entre 2015 e 2018, a professora Juliana Barreto teve incontáveis dias difíceis de muita preocupação e cuidado com a filha Luine, atualmente com 5 anos e que,  ainda  bebê, foi identificada com ausência do  corpo caloso, uma má-formação cerebral. Ela sofria convulsões cotidianas de difícil controle, às vezes até 12 no mesmo dia. Mesmo com acompanhamento médico e tentativas de tratamento, inclusive terapias de estimulação e mudança dos remédios – que chegaram a mais de cinco –, os resultados não eram positivos.

“A princípio, os médicos diziam que ela iria vegetar. As primeiras crises eram muito fortes, perdia  totalmente a consciência e passava mais de meia hora em estado convulsivo”, conta Juliana, que mora em Irará, município no interior da Bahia. Durante uma viagem à cidadezinha de Conceição do Jacuípe, próxima a Feira de Santana, um médico que atendeu Luine  sugeriu para a mãe que procurasse a Fundação de Neurologia e Neurocirurgia – Instituto do Cérebro, na capital baiana. Ela foi, passou por mais um batalhão de exames e recebeu um  diagnóstico definitivo: síndrome de Aicardi, uma doença rara, caracterizada pela ausência do corpo caloso do cérebro.
Continuou com recursos convencionais, sobretudo remédios  anticonvulsivos, mas novamente não foram eficazes para controlar as crises. Com a orientação  do médico  do Instituto do Cérebro, o último caminho, então, foi buscar tratamento para Luine com canabidiol (CBD), substância  presente na Cannabis sativa – planta popularmente conhecida como maconha, cujo cultivo e consumo são proibidos no Brasil.
“Foi difícil conseguir o medicamento. Como sempre, tudo complicado em nosso país, seja por conta dos tabus e a confusão com o uso recreativo da maconha, seja pela burocracia”, diz a mãe. Após receber a prescrição, o processo para ter o CBD foi lento. Tinha duas opções: importar por mais de R$ 1 mil, por intermédio de empresas dos Estados Unidos, ou comprar pela Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace), da Paraíba, que possui a  autorização para a produção e venda.  Optou pela segunda opção e encomendou o óleo fitoterápico de Cannabis.
Há seis meses, Juliana compra por R$ 250 (com  frete)  o medicamento para a filha e percebe uma melhora significativa. De setembro para cá, as crises, que variavam de 8 a 12 a cada dia, reduziram para, em média, uma por mês. Além disso, enxerga um desenvolvimento corporal e  de comunicação da filha – que já fica em pé, com o sorriso no rosto, e ensaia dar os primeiros passos –, um horizonte animador diante do  prognóstico trágico recebido anteriormente. “A flexibilidade, o sono e a atenção  evoluíram muito. E, o mais importante, a diminuição das crises, que era o mais doloroso. Milhões de neurônios morrem em cada crise, e isso gera uma regressão do quadro”, acrescenta.
Apesar da baixa difusão de informações, das dificuldades (de preço e burocráticas) encontradas por Juliana Barreto e milhares de outras  pessoas para ter acesso  ao medicamento fitoterápico à base de Cannabis seguindo os trâmites legais brasileiros, a discussão  e a pesquisa sobre as possibilidades de tratamento e a regulamentação  têm avançado no país. Em novembro do ano passado, o projeto de lei (SUG 25/2017) fruto de iniciativa popular e que descriminaliza  o plantio  da Cannabis para uso medicinal no país foi aprovado na Comissão de Assuntos Sociais (CAS). Atualmente encontra-se  para apreciação da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado e pode ser encaminhado para  avaliação do plenário.
Mesmo com esse percurso do projeto no Legislativo, a  Lei 11.343, de 2006, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, já autoriza, em parágrafo único, “a cultura e a colheita dos vegetais exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo  predeterminados, mediante fiscalização”. Diversos pacientes e associações valem-se desse texto para solicitar a  autorização do plantio, do cultivo e da extração na Justiça. A carioca Margarete Britto, por exemplo, foi a primeira mãe que teve a  autorização para plantar e extrair o óleo de Cannabis medicinal no Brasil. Como a filha, Sofia – diagnosticada com uma síndrome rara (CDKL5) que leva à epilepsia refratária –, não respondia  positivamente  a outros medicamentos, ela decidiu entrar com uma ação  para ter a autorização para produzir o óleo de Cannabis.
“Juntei todos os documentos que tinha para mostrar a realidade da minha família e da minha filha. Despachamos; e no dia seguinte já consegui a autorização. Para mim não foi difícil, mas talvez tenhamos dado sorte de encontrar uma juíza e uma promotora com uma cabeça mais aberta para o tema”, relata Margarete, que coordena a Associação de Apoio à Pesquisa e a Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi), no Rio de Janeiro.
Cadeia produtiva
Para  o advogado Ricardo Handro, em relação à Cannabis medicinal, é necessário regulamentar a cadeia produtiva, pois, além de  ambiguidades, há contradições na  legislação vigente. “Se podemos importar, deveríamos incentivar a produção no Brasil. Diminuiria o custo e as aquisições não seriam apenas por força de decisões judiciais individualizadas. Nós vivemos uma anomalia jurídica, e isso prejudica a qualidade de vida  do  paciente”, afirma. Na Bahia, o debate sobre a Cannabis medicinal também tem ganhado novos contornos e se ampliado, tanto com o interesse de médicos em estudos e na prescrição, quanto em iniciativas de pacientes e organizações.
No início deste mês, a Justiça Federal determinou, a pedido do Ministério Público do município de Eunápolis (sul da Bahia), que a União inclua na lista de fármacos  ofertados no Sistema Único de Saúde os medicamentos à base de Cannabis já registrados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A sentença resulta de três ações, duas individuais e uma coletiva, cujo objetivo comum é a  garantia do acesso ao medicamento. Para isso, a Justiça definiu o bloqueio de R$ 100 mil da União para a compra.
Em 2017, a propósito, já havia sido criada, em Salvador,  a Cannab – Associação para Pesquisa e Desenvolvimento da Cannabis Medicinal no Brasil, para  apoiar pacientes em busca do  acesso aos medicamentos. No início deste ano, a organização lançou a sua sede, na Pituba. O fundador e  presidente, Leandro  Stelitano, pensa que a decisão da Justiça Federal “é um passo importante para o segmento”, entretanto observa que o valor é insuficiente. “Com R$ 100 mil não conseguimos custear o tratamento nem dos pacientes de Salvador,  muito menos de toda a Bahia e do Brasil. Então, não vai ter nenhuma eficácia. Mas é positivo ver o Ministério Público e a Justiça Federal se manifestando”.
Discussão e informação
Eventos sobre o tema também têm ocorrido no estado, como o Cannabis medicinal: uma opção de tratamento, programado para esta terça-feira, às 16h, no Fera Palace. O encontro é  promovido pela  HempMeds Brasil, braço local da holding norte-americana Medical Marijuana, que vende medicamentos com CBD e tetra-hidrocanabinol (THC, substância  da Cannabis com uso terapêutico) para mais de mil clientes no Brasil.
Segundo Caroline Heinz, vice-presidente da empresa, a ideia do evento voltado para profissionais da área de saúde é divulgar os tratamentos com Cannabis. “A Bahia é o segundo estado do Brasil de pessoas com epilepsia, o maior com casos de microcefalia. Queremos informar que esses pacientes podem ser tratados de forma mais positiva e eficaz”, fala.
Para o neurologista e professor Antônio Andrade, vinculado ao Instituto do Cérebro, que pesquisa e prescreve Cannabis medicinal, o medicamento “chegou para ficar”, apesar do que chama de “desconfiança da comunidade médica” e do  preconceito da sociedade, em geral. Ele acompanha cerca de 100 pacientes na Bahia utilizando o óleo com CBD e THC, em casos de mal de Parkinson, epilepsia, esclerose múltipla, dor crônica e doenças que geram movimentos involuntários.
Em congressos e seminários de neurologia tem apresentado pesquisas que comprovam a eficácia e defendido os resultados do tratamento. “Estamos mapeando estudos em todo o mundo. Recentemente, levamos um trabalho ao Conselho Brasileiro de Neurologia de um paciente com uma doença rara e que tinha 30 crises convulsivas por dia e hoje não tem mais”, diz Andrade.
Na sua compreensão, além do preconceito que organiza uma resistência aos avanços científicos e legais, há uma pressão de laboratórios e empresas multinacionais contrárias à regulamentação. “A Cannabis  medicinal é concorrente forte dos  ansiolíticos, anticonvulsivos. Por enquanto, tem  entrado  como uma medicação coadjuvante. Mas, com o passar dos anos, a coisa vai tomar outra direção”, diz.
Numa perspectiva distinta, o Conselho Regional de Medicina da Bahia (Cremeb), em posição oficial, afirma que não há estudos que comprovam a eficácia e a segurança de medicamentos com canabidiol, seguindo a linha do Conselho Federal da Medicina. No ano passado, a instituição colocou-se contrária ao projeto de lei que visa descriminalizar o cultivo da Cannabis para fins medicinais.
Acesso  
Por conta dos trâmites no Legislativo e, principalmente, pelo alto custo de importação, vários pacientes esperam para conseguir medicamentos à base de  Cannabis na Bahia. Funcionária pública aposentada, Anna Flora Assunção tem dores diárias, consequência da fibromialgia – uma síndrome que provoca esses sintomas no corpo. Soube, por um amigo da filha, do  tratamento e de algumas  pesquisas que vêm sendo realizadas com Cannabis medicinal em situações de dores crônicas, como a dela, e da criação da Cannab na capital baiana.
“A primeira coisa que se pensa é na maconha, e  não é isso. É um óleo feito num laboratório. Mas hoje também é muito caro, R$ 1,3 mil para um vidrinho pequeno que dura um mês. Tive contato com pessoas que gastam R$ 9 mil por mês. Como não aguento mais essa dor, fui uma das primeiras pessoas a me associar aqui em Salvador”.
Fonte: A Tarde
Advertisement